Um corajoso artigo de António Garcia Pereira

Um corajoso artigo de António Garcia Pereira

Citamos

Numa reunião insolitamente semi-clandestina, realizada no passado dia 8/12, sem cobertura dos órgãos da comunicação social e sem (ao menos até agora) comunicado à imprensa, o governo aprovou formalmente o plano de reestruturação da TAP, que encomendara à consultora Boston Consulting Group-BCG[1], e que (obviamente) já havia aceite e assumido.

Portugal, com os seus 5 milhões de cidadãos emigrados e espalhados pelo mundo, as suas duas regiões autónomas atlânticas, a sua excepcional localização geográfica e as suas relações privilegiadas com as ex-colónias necessita, e indiscutivelmente, de uma companhia aérea, de dimensão internacional e gerida de acordo com as exigências e os objectivos da unidade do país, da mobilidade e da igualdade dos seus cidadãos e dos seus interesses, não apenas económicos, mas também geo-estratégicos.

A pandemia da Covid-19 é uma grave e indesmentível realidade, mas não pode de forma alguma servir para ocultar tudo o que de muito grave se passou na TAP anteriormente a Março de 2019 nem justificar agora que, uma vez mais, “reestruturar” signifique antes e acima de tudo lançar no desemprego pelo menos 1800 trabalhadores e retirar aos que, ao menos por agora, ainda fiquem ao serviço, 1/4 dos respectivos salários e toda uma série de outros direitos actualmente constantes do Acordo de Empresa.

Todo o processo de reestruturação que a Administração da TAP e o Governo do Sr. Costa pretendem agora impor a todo o custo é um enorme desfile de ilegalidades, de sombras e de silêncios.

Assim, e antes de mais, o Governo – precisamente para escamotear as suas próprias responsabilidades, desde logo quanto à actuação dos gestões privados que só em 2019 oneraram a empresa com 750 milões de euros de dívida – invoca que o problema da TAP foi a Covid-19, mas a autorização que reverentemente foi pedir a Bruxelas não foi para auxílios excepcionais devido à Pandemia (como aconteceu com diversos outros Governos e companhias aéreas), mas sim para um normal processo de resgate e reestruturação de uma empresa em dificuldades económico-financeiras, cujas exigências são muito mais rigorosas e apertadas. E são tais as exigências que a Direcção-Geral da Concorrência (DGCom) da UE – a mesma que não viu nada de errado no truque da constituição da Atlantic Gateway para permitir ao não-europeu Neeleman tornar-se dono da TAP… – se prepara para, com toda a ferocidade burocrática que a caracteriza, impor a reestruturação aos negociadores de joelhos que têm pela frente.

Dos 11 planos de resgate e reestruturação que, fora da Covid-19, foram impostos pela União Europeia a companhias de aviação, só uma sobreviveu, sendo assim certo que o resultado mais provável da aplicação à TAP de um tal tipo de plano será, no mínimo, a sua redução a uma mera companhia regional e, no máximo, a sua destruição, com a Lufthansa e outros gigantes da aviação civil a esfregarem as mãos de contentes perante a possibilidade de se apropriarem dos respectivos despojos.

Mas há muito mais ainda! De acordo com a Lei Laboral Portuguesa, o Código do Trabalho, havendo lugar a um plano de reestruturação ou sequer a uma qualquer medida de que resulte ou possa resultar uma substancial diminuição do número de trabalhadores, um agravamento das suas condições de trabalho (designadamente remuneratórias) ou uma mudança na organização do trabalho, a Comissão de Trabalhadores e os Sindicatos representativos dos vários sectores do Pessoal têm direito não só a ter, previamente, informação precisa e real acerca de tal plano ou conjunto de medidas, como também a emitir parecer sobre os mesmos antes deles serem apresentados e, mais ainda, a participar no próprio processo, designadamente tendo reuniões com os órgãos da empresa encarregues dos trabalhos preparatórios da dita reestruturação[2].

Ora, como bem sabemos, nada disto se tem vindo a passar, já que a Administração e o Governo escolheram (perante a estranha passividade de um grande número de organismos representativos dos trabalhadores e o significativo silêncio dos partidos políticos que se dizem amigos e defensores dos mesmos trabalhadores) a postura do acintoso desrespeito pela Lei, da assumida imposição do facto consumado e da técnica da gestão “científica” do medo.

Assim, e depois da habitual boataria do “jornal de caserna” da companhia, referindo, sem concretizar critérios, sectores, valores base de cálculos e/ou razões justificativas, milhares de despedimentos e violentos cortes salariais, a Administração da empresa procurou colocar todos os trabalhadores num sinistramente cirúrgico estado de choque, logo, incapazes da reacção séria e dura que tudo isto merecia.

Repare-se, por exemplo, que a Administração e o Governo se recusam a identificar de onde provêm e em quanto importam os diversos custos da empresa, comparando-os com os custos salariais das várias categorias de trabalhadores, fazendo assim propositadamente com que não se saiba quantas pessoas empregam e que custos representam sectores de que ninguém fala, mas que se sabe que significam percentagens bastante elevadas de tais custos (como o Marketing e a Formação[3], por exemplo) e que representam alguns dos autênticos “reinos feudais” por que a empresa se caracteriza, enquanto igualmente não se refere, por exemplo, que, em 2019, a Manutenção apresentou resultados positivos de 47 milhões.

E também não explica onde vai buscar a pretensa necessidade de mandar embora 500 pilotos, 1.800 tripulantes de cabine e 500 trabalhadores de terra, designadamente da Manutenção. Isto, quando se anuncia que a TAP pretende ficar apenas com 88 aeronaves e se sabe que para cada uma delas os rácios europeus são de 6 a 7 tripulações por cada aeronave e de 3 a 5 técnicos de manutenção por cada um dos aviões[4].

Basta ter presente que, actualmente, em termos de manutenção, a TAP já tem menos de 1,5 técnico por cada aeronave e que o número de tripulantes necessários para operar devidamente os referidos 88 aviões são em número muito superior àquele dos que restarão após os anunciados despedimentos[5], para se perceber as “contas de merceeiro” que estão a ser apresentadas como se de um estudo rigoroso se tratasse assim como o erro estratégico de conceber o corte dos salários como a “mezinha” para ultrapassar o desequilíbrio financeiro da Companhia[6].

E tudo isto sem ter sequer em conta a circunstância de as previsões da retoma da actividade da aviação civil, em que supostamente o Governo e Administração se estão a basear, e ao contrário do que vieram invocar, estarem hoje ultrapassadas face a novas realidades, muito em particular a descoberta da vacina contra a Covid-19 e as expectativas de retoma muito superiores às que existiam há um mês atrás[7].

Depois, a Administração da TAP e o Governo trataram de transformar os já supra-indicados direitos da Comissão de trabalhadores e os Sindicatos numa autêntica farsa, chamando-os para reuniões em que se limitaram a apresentar factos consumados e declarações genéricas para assim poderem depois vir invocar que cumpriram o ritual de “ouvir os representantes dos trabalhadores”, ainda que, na verdade, não suportem de todo ter de falar e de negociar com eles.

O Governo até se prepara – aliás, como a central da manipulação no interior da companhia já se encarregou de ir espalhando – para suspender o direito (constitucionalmente consagrado) à contratação colectiva, para tal desencantando um diploma legal de há cerca de 43 anos[8] para, mediante a declaração (feita pelo próprio Governo, agindo assim em causa própria) da TAP em situação económica difícil, lhe aplicar um qualquer celerado “regime sucedâneo” e conseguir deste modo impor que, ao contrário do que dispõe o Acordo da Empresa (que estabelece as tripulações-tipo), os aviões possam voar apenas com o número de tripulantes correspondente à “tripulação mínima de segurança” indicada pelo fabricante, mas atribuindo-lhes também outras tarefas como a distribuição de refeições e as vendas a bordo[9].

Simultaneamente, e sob a ameaça dos anunciados despedimentos, tentam ainda levar os trabalhadores a, sob o inefável argumento dos tempos da tróica de que “mais vale um mau emprego do que nenhum emprego”, aceitarem a perda do Acordo de Empresa e dos direitos e garantias nele actualmente consagrados. Pelo meio, irão continuar os processos de “outsourcing” despedindo trabalhadores TAP e contratando trabalhadores precários através de empresas de trabalho temporário (como no contact center) ou entregando actividades a entidades terceiras, como o chamado “Projecto Júpiter” (com a exteriorização da assistência informática ao utilizador e do Help Desk).

António Costa prepara agora mais uma das suas famigeradas manobras táticas, a qual tem de ser energicamente denunciada, ao pretender, primeiro, levar o seu sinistro plano de reestruturação da TAP à aprovação dos senhores da DGCom e (só) depois apresentar o mesmo plano, já assim aprovado por Bruxelas, à aprovação no Parlamento. Deste modo, se ele, sob a pressão de que a alternativa seria o fecho da Companhia, for aí objecto de votação favorável, alija parte das suas gravíssimas responsabilidades políticas e, se ele for eventualmente reprovado, logo proclamará que a responsabilidade da destruição da TAP não é dele, mas sim dos que se recusaram a joelhar perante Bruxelas.

Mas não posso deixar também de dizer que manobras destas apenas apanharam desprevenidos os mal informados ou os ingénuos, já que há muito que nada pode explicar toda a sombra e todo o silêncio que cercam o rol de ilegalidades, de abusos e de manobras, nunca adequadamente investigadas e muito menos devidamente punidas, que têm vindo a ser praticados na e a propósito da TAP.

Recorde-se, de entre muitos muitas outras situações, “apenas” as seguintes, que há muito venho denunciando:

– A instrumentalização da TAP para salvar a Azul (https://www.jornaltornado.pt/os-silencios-cumplices-do-governo-dos-partidos-apoiam/).

– A venda à Vinci dos terrenos do Aeroporto e outros negócios obscuros (Ponto 5 em https://www.jornaltornado.pt/a-irresponsabilidade-e-impunidade-em-que-vivemos/).

–  As constantes violações do Acordo de Empresa (https://www.jornaltornado.pt/a-tap-um-bando-de-ilegalidades-voadoras/).

– Os golpes e as ilegalidades do processo de privatização (https://www.jornaltornado.pt/ainda-sei-voces-fizeram-no-verao-outono-passado/).

– O pagamento de prémios chorudos em anos de prejuízo (http://www.noticiasonline.eu/tap-saqueadores-a-solta/).

– Com as sucessivas administrações da TAP levaram à sua deterioração (http://www.noticiasonline.eu/tap-saqueadores-a-solta/).

– E especificamente sobre o que são sempre estes processos de reestruturação http://www.noticiasonline.eu/casos-bes-ges-e-tap-tao-diferentes-e-tao-iguais/).

Ora, com Administrações, Governos, Sindicatos e Partidos políticos assim, tão “amigos” dos trabalhadores da TAP, estes seguramente não precisam de inimigos e devem antes começar a pensar que, se os actuais organismos ditos seus representantes não se mostram à altura dos acontecimentos, devem então criar os seus próprios órgãos de luta. E, sobretudo, contra os já habituais apelos à “calma” e à “contenção” dos espezinhados, baterem-se decididamente contra um plano de reestruturação que é uma verdadeira declaração de guerra contra quem, ao longo de décadas, tem feito a Companhia, ou seja, quem nela trabalha e que só servirá para a destruir a curto prazo.

Ajoelhar perante o arbítrio e a injustiça nunca compensou. A luta deve continuar, pois, e sem desfalecimento!

António Garcia Pereira


[1] Aliás, deve recordar-se que o referido plano de reestruturação foi preparado e elaborado pela mesma consultora (a dita BCG), que já fora contratada em 2015 pelos accionistas privados, Neeleman e Pedroso, para elaborar um “plano de eficiência” para a TAP, com o mal-disfarçado objectivo de a transformar numa low-cost à custa de inúmeros despedimentos e da alienação de alguns sectores mais rentáveis, a começar pelo da Manutenção. E a mesma receita repete-se agora…

[2] Tudo nos termos, bem explícitos, dos art.ºs 423º, n.º 1, al. c), 424º, nº 1, al. b) e e), 425º, al. c), 429º, n.º 2, al. a) e c), 440º, n.º 1, 443º, n.º 2 e 466º, al. b) e c), todos do Código do Trabalho.

[3] Onde estão colocados alguns dos privilegiados da empresa.

[4] Como sucede, por exemplo na Air France/KLM e na Swiss International Airlines.

[5] Para uma empresa com o tipo de serviço de voo da TAP, com voos de longo curso e nocturnos e com diversas estadias, por cada aeronave deve haver 6 a 7 tripulações de cabine completas e o número de membros da tripulação tipo estabelecida no Acordo de Empresa varia entre 4 nos A319 e A320 e 9 nos A330, o que representará, para 88 aviões, bem mais de 3.000 tripulantes de cabine.

[6] Desequilíbrio financeiro esse que se deve sobretudo a negociatas ruinosas para a Companhia como a da compra da VEM, a empresa de manutenção da VARIG, no Brasil, que já custou mais de mil milhões de euros ao grupo TAP e o elevadíssimo custo dos leasings operacionais dos aparelhos desenfreadamente comprados pelos gestores privados à Airbus e que ascendem a 2,2 mil milhões de euros, a que acrescem práticas como as de despedir trabalhadores em Portugal, mas continuar a deslocar milhões de horas de trabalho para o Brasil para, sob o pretexto de tais pagamentos, continuar a transferência de avultadas quantias para lá.

[7] Por exemplo, a BCG, o governo e Administração invocaram que a recuperação do tráfego aéreo para os níveis de 2019 só ocorrerá em 2025 quando em 27/11 a IATA apontou essa previsão para o primeiro trimestre de 2022!

[8] O inconstitucional, em meu entender (por violar o direito à contratação colectiva, consagrado no art.º 56, nº 3 da Constituição), decreto-lei nº 353º-H/77, de 29/08.

[9] Esta prática, bem como a do já apontado desinvestimento na componente humana da Manutenção, não podem deixar de ser consideradas como erradas do ponto de vista da própria segurança de voo.

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