Caso dos metadados: acórdão de rejeição do requerimento da PGA

Caso dos metadados: acórdão de rejeição do requerimento da PGA

ACÓRDÃO N.º 382/2022

 Ver o acórdão em referência 

Processo n.º 828/2019

Plenário

Relator: Conselheiro Afonso Patrão

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:

  1.  Nos presentes autos de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, que incidem sobre normas emanadas pela Assembleia da República e em que é requerente a Provedora de Justiça, veio a Procuradora-Geral da República arguir a nulidade do Acórdão n.º 268/2022, invocando o disposto no n.º 1 do artigo 219.º da Constituição, as alíneas a), d) edo n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto do Ministério Público e as alíneas c) d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil (CPC) — que entende aplicável ex vi artigo 69.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional (LTC).

O requerimento assenta nos seguintes fundamentos:

— o Ministério Público é defensor da legalidade democrática e interessado na promoção da defesa dos valores constitucionais do Estado de direito democrático e da boa administração e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 «pode vulnerar tais interesses constitucionalmente protegidos»;

— verifica-se contradição entre a fundamentação e a decisão, uma vez que o ponto 18. da fundamentação do Acórdão n.º 268/2022 exclui do juízo de inconstitucionalidade os dados de base, embora o dispositivo declare a inconstitucionalidade de todo o artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho;

— existe omissão de pronúncia, pois «não fixou o Tribunal, expressamente, os efeitos da inconstitucionalidade, permitindo a aplicação retrospectiva, e mesmo retroactiva, da sua doutrina, pondo em risco aqueles interesses constitucionalmente protegidos».

 

  1. A pretensão é manifestamente inatendível, por três razões.
  1. A LTC não contém qualquer norma que regule a dedução de incidentes pós-decisórios relativos a acórdãos proferidos pelo Tribunal Constitucional em sede de fiscalização abstrata da constitucionalidade. Ao invés, como se concluiu no Acórdão n.º 468/2014,«a única disposição de remissão subsidiária para legislação aplicável é a que consta do artigo 69.º dessa Lei, que se refere à tramitação dos recursos em fiscalização concreta».

            Porém, daqui não decorre a inadmissibilidade de tais incidentes na espécie de processos considerada. Com efeito, reiterando-se a jurisprudência dos Acórdãos n.ºs 58/95 e 468/2014, o processo «está sujeito aos princípios gerais do processo aplicáveis a decisões insuscetíveis de recurso», razão pela qual é permitido aos sujeitos processuais suscitar incidentes pós-decisórios que daqueles decorram — como é o caso, justamente, da arguição de nulidade. Sendo certo que o processo de fiscalização abstrata sucessiva tem como sujeitos processuais o requerente (que, para além de apresentar o pedido de declaração de inconstitucionalidade, pode ser chamado a intervir nos termos do disposto do n.º 3 do artigo 62.º da LTC) e o órgão autor da norma fiscalizada (que exerce contraditório, nos termos do artigo 54.º da LTC).

É a estes – e somente a estes, enquanto sujeitos processuais de um dado processo de fiscalização abstrata – que se reconhece legitimidade (processual) para suscitar incidentes pós-decisórios, como se decidiu nos Acórdãos n.ºs 429/91, 58/95, 1145/96, 128/2003 e 468/2014 (cfr. CARDOSO DA COSTA, “Fiscalização abstracta da constitucionalidade e aclaração de decisões judiciais”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 144, n.º 3988, pp. 61 e 62), razão pela qual carece a Procuradora-Geral da República de legitimidade para a sua dedução.

  1. Em segundo lugar, sempre se dirá que os fundamentos invocados para a nulidade do Acórdão n.º 268/2022 são manifestamente improcedentes.

Por um lado, porque as normas que determinam uma obrigação indiferenciada de conservação de metadados não podiam já ser aplicadas por qualquer autoridade nacional desde 2014, momento em que se concluiu pela sua incompatibilidade com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia de 8 de abril de 2014, Digital Rights Ireland, proc. C-293/12 e C-594/12; e de 21 de dezembro de 2016, Tele2 Sverige e Watson, proc. C-203/15 e C-698/15) e surgiu a obrigação, para todas as autoridades nacionais (incluindo judiciárias) de recusar a sua aplicação, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição e tal como foi decidido pela Comissão Nacional de Proteção de Dados na Deliberação n.º 1008/2017, de 18 de julho de 2017.

Por outro lado, é evidente a inexistência de qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão, no que se refere aos dados de base. Com efeito, no ponto 16. da fundamentação, o Tribunal deixou inequívoco que, ao admitir que os dados pudessem «ser conservados em países subtraídos à fiscalização por autoridade administrativa independente e aos direitos de auditoria dos visados, o legislador transgride a injunção de previsão do seu armazenamento em local em que sejam efetivas as garantias constitucionais de proteção e a intervenção da autoridade administrativa independente (n.º 2 do artigo 35.º da Constituição), falecendo a garantia de proteção destes dados contra a devassa ou difusão. Com efeito, o ordenamento apenas tutelou a transferência para Estados terceiros de tais dados pessoais e somente no que concerne a pessoas singulares; não tendo determinado, como resultava da injunção constitucional, a obrigação de armazenamento desses dados num Estado-Membro da União Europeia», concluindo-se pela inconstitucionalidade da norma que determina a conservação de todos os dados elencados no artigo 4.º: «É quanto basta para concluir pela inconstitucionalidade, por violação do direito à autodeterminação informativa, consagrado nos n.ºs 1 e 4 do artigo 35.º da Constituição, interpretado em conformidade com o disposto nos artigos 7.º e 8.º da CDFUE, das normas contidas nos artigos 4.º e 6.º da Lei n.º 38/2008, de 17 de julho». O que se indagou, nos pontos 17. e 18. da fundamentação, foi se bastaria ao legislador cumprir tal injunção para que a conservação se tivesse por constitucionalmente conforme, havendo-se concluído que, quanto aos dados de tráfego (mas não quanto aos dados de base)as normas fiscalizadas padecem ainda de outros vícios.

Do mesmo passo, e igualmente com não menor evidência, não se verifica qualquer omissão de pronúncia por não ter o Tribunal fixado expressamente os efeitos da decisãoA consequência jurídica da declaração de inconstitucionalidade de quaisquer normas é determinada pela Constituição e não pelo Tribunal Constitucional, consistindo na invalidade ipso jure, com produção de efeitos desde a sua entrada em vigor (n.º 1 do artigo 282.º da Constituição). É apenas quando o Tribunal Constitucional considera necessário, no condicionalismo do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, utilizar a faculdade excecional de afastamento da eficácia normal da declaração de inconstitucionalidade (preservando efeitos produzidos por normas inconstitucionais) que lhe cabe determinar os respetivos termos. E ainda que uma eventual solicitação nesse sentido pudesse gerar ao Tribunal o dever de pronúncia, certo é que nem a Provedora de Justiça, nem a Assembleia da República o fizeram. O que se compreende, pois tal decisão seria, além do mais, incompatível com o Direito da União Europeia, que «se opõe a que órgão jurisdicional nacional limite no tempo os efeitos de uma declaração de invalidade que lhe incumbe, por força do direito nacional, relativamente a uma legislação nacional que impõe aos prestadores de serviços de comunicações eletrónicas uma conservação generalizada e indiferenciada dos dados de tráfego e dos dados de localização» (Acórdão TJUE de 5 de abril de 2022, Commissioner of An Garda Síochána, proc. C-140/20, n.ºs 119-126 e 128), pelo que uma eventual limitação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade colocaria o Estado Português em situação de incumprimento.

  1. Mais grave ainda, no que àinatendibilidade da pretensão deduzida diz respeito, é que   não cabe à Procuradora-Geral da República — desde logo, por razões de ordem jurídico-constitucional de natureza material — suscitar incidentes pós-decisórios, em processos de fiscalização abstrata em que não seja sujeito processual.

O Ministério Público é defensor da legalidade democrática (n.º 1 do artigo 219.º da Constituição), sendo atribuída ao Procurador-Geral da República, em paralelo com os órgãos e entidades mencionados no n.º 2 do artigo 281.º da Constituição, legitimidade para pedir ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de normas, com força obrigatória geral.

Porém, a defesa da legalidade não pode prevalecer contra a Constituição (cfr. artigos 3.º, 204.º e n.º 1 do artigo 277.º). Razão pela qual se atribui ao Tribunal Constitucional a responsabilidade por apreciar — e sendo o caso declarar — a inconstitucionalidade das normas (mas já não a sua conformidade constitucional), a pedido dos órgãos e entidades a quem a Constituição atribuiu legitimidade (artigos 223.º, n.º 1, 277.º e 281.º da Constituição). A intervenção destes, no domínio da fiscalização abstrata sucessiva, esgota-se nesse quadro, garantindo a natureza jurisdicional desta via de defesa da Constituição.

Não compete à Procuradora-Geral da República invocar a «promoção da defesa dos valores constitucionais do Estado de direito democrático» para sustentar que um acórdão do Tribunal Constitucional «pode vulnerar tais interesses constitucionalmente protegidos». Em matéria de defesa da Constituição através do processo de fiscalização abstrata sucessiva, a Constituição não reconhece nem ao Ministério Público, nem a qualquer outro órgão uma função ou interesse extraprocessual de «defesa dos valores constitucionais do estado de direito democrático e da boa administração». Daí a ilegitimidade constitucional da dedução de um incidente pós-decisório por parte de uma entidade – seja a Procuradora-Geral da República, seja qualquer outro dos órgãos ou entidades elencados no n.º 2 do artigo 281.º da Constituição – que, embora legitimada a desencadear a fiscalização abstrata sucessiva, não seja sujeito no concreto processo em que o incidente é deduzido. Sem que a circunstância de o Tribunal Constitucional notificar todas as suas decisões aos magistrados do Ministério Público que nele exercem funções tenha a virtualidade de modificar a sua posição jusconstitucional, não sendo aqui aplicável a parte final da alínea q) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto do Ministério Público.

  1. Resta concluir que a Procuradora-Geral da República carece de legitimidade, processual e constitucional, para suscitar o presente incidente pós-decisório, razão pela qual se decide não tomar conhecimento do requerimento apresentado.

Notifique a requerente, a Provedora de Justiça e o Presidente da Assembleia da República.

Lisboa, 13 de maio de 2022 – Afonso Patrão – José João Abrantes – Pedro Machete – Joana Fernandes Costa – João Pedro Caupers

Atesto o voto de conformidade dos Senhores Conselheiros José Teles PereiraMariana CanotilhoMaria Benedita UrbanoAntónio Ascensão RamosJosé Eduardo Figueiredo DiasAssunção RaimundoLino Ribeiro (com exceção do segundo parágrafo do ponto 4, por desconsiderar os limites que o artigo 8.º, n.º 4, da Constituição coloca ao princípio do primado do direito da União Europeia) e Gonçalo Almeida Ribeiro, que participaram na sessão por videoconferência.

Afonso Patrão

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